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Tempo de Pipa*

A temperatura no interior da livraria era glacial, a iluminação, aconchegante, mas, somada à falta de aberturas, não deixava adivinhar a cor do dia no lado de fora do shopping e propiciava um distanciamento da realidade externa que o relógio não era capaz de resolver.
As estantes altas, de madeira escura, eram boas de ver e tocar, embora passassem a impressão de que deveria estar mais agasalhado. A velocidade de todos ao redor causava algum desconforto – a maioria dos clientes entrava na loja e se dirigia à prateleira bem identificada e, após um breve esforço para localizar o tema procurado, alcançava seu objeto de interesse e ia para o caixa. Só havia uma ou duas pessoas que, como ele, perambulavam sem pressa e sem querer ajuda dos atendentes e seus computadores – tentara uma vez, mas a mocinha não sabia sequer digitar corretamente o nome ditado, que dizer da possibilidade de uma troca de ideia sobre o autor ou sua obra.  Melhor procurar sozinho, vagar a esmo.
/Outono/
Uma capa chamou sua atenção pela imagem esmaecida que suplantava o título ruim. Pegou o livro e entrou pelas esquinas da fotografia antiga. O tom sépia se parecia com o da rua que o trouxera até ali. As folhas deslocadas das copas das árvores para a calçada e os gramados pouco viçosos faziam reviver o percurso que fizera antes de pensar em beber para espantar o frio que ainda não se instalara realmente.
Não leu um parágrafo sequer, apenas folheou rapidamente e tropeçou em uma ou outra palavra, mas nenhuma parecia ter a tonalidade daquela cena. Sentiu saudades da casa dos avós, do cheiro de pão que o recebia na volta da escola e das tarefas que havia para fazer antes de poder abocanhar a massa tenra pontilhada de sementes de erva doce e brigar com a camada de nata que se formava na superfície do café com leite. Fez um gesto como se fosse afrouxar a gravata, que não vestia naquele momento, mas era mais interno o nó que o incomodava.
Primavera/
A vontade de ler não teve força suficiente, por isso se contentou em assistir à vida, mesmo sem desgrudar do volume com capa dura – uma bela edição. Lembrou-se da caligrafia caprichada que usava para assinar os livros com os quais costumavam presenteá-lo desde criança. De volta a casa onde crescera, instalado no alpendre, degustou a tranquilidade de não ter de dar ordens ou executar qualquer tarefa. A temperatura amena que encontrara ali fazia entender que sua ação era dispensável, fosse no trabalho ou na manutenção de suas pequenas manias – o jeito de dobrar as camisas, a forma de ordenar os livros na estante.
Atirado na cadeira antiga, cerrou os olhos para aproveitar as constatações recentes. O livro caiu no chão e o acordou, mas não desbotou o riso que veio ao lembrar do sonho – era garoto ainda e se deleitava com um pirulito espiral multicolorido enquanto a mãe regava o jardim onde os lírios começavam a florescer.

 

* Título escolhido por alunos da Escola Técnica Estadual Marecha Mascarenhas de Moraes durante as atividadesdo Sesc Mais Leitura - Cachoeirinha. 

A escolha desse título para a sequência inverno - outono - primavera foi particularmente tocante para mim, pois, além da interpretaçao sensível dos alunos, houve um link entre o texto e a música de Cícero, que, aliás, serviu de trilha sonora durante o processo de escrita dessa obra. 

Os inspirados que escolheram Tempo de pipa foram: Quetlen Cunha, Larissa Costa, Vanessa Quadros, Alissa Reis, Lucas Siqueira, Laura Rochele Thaís Collioni, Luana Boeira, Chrystian Borges e Felipe Rodrigues. 

www.mauremkayna.com

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